terça-feira, 9 de outubro de 2018
Mais de 200 artistas plásticos escrevem ao primeiro-ministro: "Perdeu-se uma geração de artistas"
Signatários, entre os quais figuram alguns dos mais importantes artistas nacionais como Julião Sarmento ou João Cutileiro, defendem criação de colecção de arte portuguesa contemporânea e criação de agência independente da DGArtes.
Alguns dos maiores artistas plásticos portugueses assinaram uma carta que transformaram em “documento histórico” devidamente emoldurado que vão entregar quarta-feira ao primeiro-ministro para denunciar como a crise dos últimos anos “destruiu” o mercado da arte e causou a perda de “uma geração de artistas”. “O Estado ao longo dos anos alheou-se das suas responsabilidades”, apontam Jorge Molder, João Cutileiro, Julião Sarmento ou Fernanda Fragateiro, parte do grupo de mais de 200 artistas que reivindicam a criação de um fundo estatal para aquisições e a criação de uma agência para a arte contemporânea independente da Direcção-Geral das Artes. A situação “chegou ao ponto da necessidade de acção humanitária”.
“O resultado desta crónica inoperância é a impossibilidade de ver hoje, em Lisboa ou no Porto, o que é a produção artística contemporânea em Portugal. Esse lugar e essa colecção não existem”, queixam-se os artistas que assinam a missiva.
É uma longa carta que passa em revista o estado da arte em Portugal, da crise da crítica à atenção dada pelos média às artes plásticas, passando por questões fiscais e apelos à acção do Estado. Endereçada a António Costa, será entregue quarta-feira pelas 18h na residência oficial do primeiro-ministro impressa em papel de 150x150 cm, emoldurada em forma de cruz em fundo negro. É subscrita por alguns dos mais relevantes nomes das várias gerações de artistas plásticos portugueses em actividade: Rui Chafes, José Pedro Croft, Ana Vidigal, Paulo Nozolino, Adriana Molder, João Pedro Vale, Nuno Alexandre Ferreira, Ana Perez-Quiroga, João Queiroz, Albuquerque Mendes, José de Guimarães ou Sofia Areal.
O papel do Estado é posto em causa a vários níveis: “a colecção da Secretaria de Estado da Cultura/Instituto das Artes estagnou há mais de 15 [anos]", denunciam os artistas plásticos, que a classificam como um “bom mau exemplo” de como a produção artística dos últimos 40 anos está agregada em colecções “sem estratégia a médio e longo prazo”. E os artistas defendem “um programa”: “fundar uma colecção de arte portuguesa contemporânea consequente para gerações futuras e um local, ou vários, onde pudesse ser visitada de forma permanente, como acontece nas outras capitais da Europa”. Sobre a Lei do Mecenato Cultural, defendem que “nunca funcionou de forma correcta” pela sua complexidade e falta de aplicação.
Apontando a mira ao trabalho da DGArtes, os signatários lembram o que consideram um “erro” original de junção nessa estrutura das artes visuais e do espectáculo após a fusão “catastrófica” do Instituto de Arte Contemporânea e do Instituto Português das Artes do Espectáculo. Por isso mesmo, os artistas signatários recordam ainda a polémica do início do ano em torno do novo modelo de apoio às artes, que levou artistas de vários sectores para as ruas mas que contou com parca participação dos artistas plásticos. Pedem agora “um fundo fechado para aquisições e de um organismo (Agência para a Arte Contemporânea) regulador de apoios a projectos, bolsas, publicações, internacionalização, Bienal de Veneza, etc...”. Na carta, considera-se “urgente que o Estado reveja o regime do IRS, o da Segurança Social bem como o dos cuidados de saúde de trabalhadores que não vão beneficiar de reforma”.
Geração perdida
“Com a crise dos últimos anos perdeu-se uma geração de artistas — ou terão os artistas de continuar a emigrar por falta de solução, nem vinda do Estado, nem do mercado?”, encetam os signatários, denunciando que “o mercado da arte em Portugal é uma falácia” na ausência de “estratégia cultural”. Galerias sem capacidade económica, feiras com “pouca consequência artística” como a ArcoLisboa, escassez de coleccionadores com espólios regularmente actualizados e estruturados a comprar de facto em Portugal ou de mecenas entre os “cinco ou seis milionários com capacidade para intervenção relevante no mercado” são alguns dos diagnósticos dos artistas. Que declaram a situação do Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado “comatosa” e exemplo de má gestão da instituição pública.
O tema da crise, encetada em 2008, trespassa a carta-denúncia, que recorda como as mais importantes instituições que adquirem arte contemporânea portuguesa – e elencam CGD-Culturgest, CCB/Berardo e FLAD-Fundação Luso Americana Para o Desenvolvimento — “não compram há pelo menos dez anos”, com a Fundação Serralves ou o MAAT e EDP a fazer compras com baixo orçamento e “critérios por vezes questionáveis”, lamentam. Sobre as colecções da banca, lamentam ainda que estejam “por resolver os imbróglios da Colecção Berardo, Miró/BPN e Banco Privado/Ellipse Foundation e BESArt” assim longe do público.
A carta termina com um apelo a “uma estratégia cultural que conte com a visão e uma real participação dos artistas (mais do que com burocratas), que acorde o mercado e que realmente vise uma efectiva difusão nacional e internacional da arte portuguesa” e manifesta a urgência de pôr fim ao que consideram ser “o Estado de amnésia e de vazio culturais” porque, rematam, “não se pode continuar a fechar os olhos à arte contemporânea”.
O escultor José Pedro Croft afirma ao PÚBLICO que “este diagnóstico tremendo” não foi feito com nenhuma urgência: é uma tomada de posição “feita com mais tristeza do que esperança”.“Há cinco, seis ou dez artistas que conseguem expor fora de Portugal e fica tudo contente, mas isso não pode ser. Pessoalmente não me sito maltratado, mas é o país que está em causa”, acrescenta Croft, que representou Portugal na Bienal de Arte de Veneza em 2017 e vai ter uma exposição numa galeria de São Paulo em Novembro.
“Eu faço parte das colecções públicas com obras produzidas há dez anos e depois tenho obras em colecções privadas, mas há muitos criadores mais novos que não fazem parte. Portanto não existem.” Este é um “mal-estar”, acrescenta, de décadas: “E todos os governos prometem que vão alterar as políticas culturais em relação às artes plásticas, mas nada acontece.”
Também a artista plástica Luísa Cunha explica ao PÚBLICO que subscreveu a carta "em nome dos artistas mais jovens, para exigir, tanto quanto possível, uma política cultural diferente e mais dirigida à arte contemporânea". Preocupa-se com a subsistência dos jovens artistas, com a instabilidade do mercado e considera que a constituição de um fundo de aquisições é das reivindicações mais urgentes que constam desta invectiva ao Governo - "a arte deve continuar a ser exposta, os acervos têm de ser continuados". com Isabel Salema
tp.ocilbup@osodrac.anaoj
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