Relação do Porto mantém pena suspensa para dois funcionários de discoteca de Gaia condenados por terem tido "cópula" com jovem de 26 anos quando "incapaz de resistir". E fala em "danos físicos" sem "especial gravidade".
A culpa dos arguidos [embora nesta sede a culpa já não seja chamada ao caso] situa-se na mediania, ao fim de uma noite com muita bebida alcoólica, ambiente de sedução mútua, ocasionalidade (não premeditação) na prática dos factos. A ilicitude não é elevada. Não há danos físicos [ou são diminutos] nem violência [o abuso da inconsciência faz parte do tipo]."
As considerações pertencem a um acórdão da Relação do Porto, datado de junho e assinado pelos juízes Maria Dolores da Silva e Sousa (relatora) e Manuel Soares, dizendo respeito a um caso ocorrido em novembro de 2016, quando uma jovem de 26 anos - a quem se dará o nome de Maria - foi, de acordo com o dado como provado, submetida, enquanto "incapaz de resistência" por estar muito embriagada, a relações sexuais "de cópula completa" por dois funcionários da discoteca Vice Versa, em Vila Nova de Gaia, na casa de banho da mesma e quando o estabelecimento se encontrava já encerrado, não havendo mais ninguém nele além dos arguidos e de Maria.
"A culpa dos arguidos [embora nesta sede a culpa já não seja chamada ao caso] situa-se na mediania, ao fim de uma noite com muita bebida alcoólica, ambiente de sedução mútua, ocasionalidade (não premeditação), na prática dos factos. A ilicitude não é elevada. Não há danos físicos [ou são diminutos] nem violência [o abuso da inconsciência faz parte do tipo]."
Os homens, de 25 e 39 anos à data dos factos, respetivamente barman e porteiro/relações-públicas da discoteca, Marcos e Paulo de primeiro nome, foram condenados a quatro anos e meio de prisão em acórdão de fevereiro do juiz 2 do Juízo Criminal Central de Nova de Gaia, que suspendeu a aplicação da pena, suspensão confirmada pela Relação. De acordo com esta última decisão - não foi possível consultar a da primeira instância, já que estas por norma não são disponibilizadas na net -, a acusação feita pelo Ministério Público (MP), que recorreu por não concordar com a suspensão da pena, não foi toda considerada procedente.
Os arguidos, que estiveram de fevereiro a junho de 2017 em prisão preventiva e depois em prisão domiciliária com pulseira eletrónica até ao julgamento, foram apenas condenados "pela prática, em autoria material, de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência", descrito no artigo 165.º do Código Penal e cujo enquadramento penal é de dois a dez anos de prisão.
"Ela estava toda desmaiada"
Não recorreram da condenação, apesar de, segundo o recurso do MP, não admitirem ter cometido o crime nem manifestarem "qualquer arrependimento pela prática dos factos": "Apenas reconheceram ter mantido relações sexuais com a ofendida, negando o estado de inconsciência em que a mesma se encontrava. (...) Apenas se limitam a mostrar arrependimento em função das consequências que para si próprios os factos praticados podem acarretar; ou seja, um arrependimento focado e centrado nas suas pessoas."
Considerando que "ambos os arguidos desprezaram totalmente os mais elementares valores morais e jurídicos de respeito devido pela liberdade e autodeterminação sexual da ofendida, ao se aproveitarem do seu estado de inconsciência para com ela manterem relações sexuais de cópula", o MP frisa no recurso que a seguir ao crime o barman Marcos não mostrava dúvidas sobre o "estado de inconsciência da ofendida", referindo-o "em telefonemas intercetados na escuta ao seu telemóvel dizendo "(...) ela estava toda fodida (...)" e "(...) Não. Ela estava toda desmaiada no quarto de banho (...)."
O barman não mostrava dúvidas sobre o "estado de inconsciência da ofendida", referindo-o "em telefonemas intercetados na escuta ao seu telemóvel dizendo: "Ela estava toda fodida" e "ela estava toda desmaiada no quarto de banho."
Aparentemente, a falta de arrependimento não foi valorizada pelo tribunal de recurso. Tão-pouco terá sido tida em conta a possibilidade de os arguidos serem condenados pela forma agravada do crime - a que prevê um aumento de um terço nos limites mínimo e máximo quando, nos termos do artigo 177.º do CP, é "cometido conjuntamente por duas ou mais pessoas" - e que, aparentemente, o tribunal inferior rechaçou argumentando "não se ter demonstrado o planeamento de uma decisão conjunta ou a sua execução com diferentes papéis atribuídos a cada um mas, em vez, duas resoluções autónomas e distintas".
Igualmente, o facto de pelo menos Paulo, o porteiro, não ter usado preservativo quando submeteu Maria a "cópula completa, ejaculando" - foram encontrados resíduos do seu sémen no exame forense que foi feito quer a Maria quer às suas roupas - não mereceu qualquer censura penal ou sequer menção na decisão, apesar de ser uma conduta que coloca a vítima em perigo acrescido.
"Os arguidos não demonstraram qualquer arrependimento pela prática dos factos. Apenas reconheceram ter mantido relações sexuais com a ofendida, negando o estado de inconsciência em que a mesma se encontrava. (...) Apenas se limitam a mostrar arrependimento em função das consequências que para si próprios os factos praticados podem acarretar."
Quanto a serem ambos funcionários do estabelecimento, facto que o MP frisa no seu recurso impor-lhes "um comportamento mais cuidadoso senão mesmo de proteção" dos clientes, "pelo que redobrado era o seu dever de não serem eles a abusar dessas situações [de excesso alcoólico], especialmente com comportamentos sexuais altamente reprováveis e dolosos", também não terá sido considerado relevante pelas duas instâncias - como, de resto, a evidência de estes terem mantido a vítima num local fechado, que controlavam, durante várias horas.
Diz a Relação: "Os factos demonstram que os arguidos estão perfeitamente integrados, profissional, familiar e socialmente e dão-nos conta de, pelo menos, grande constrangimento dos arguidos perante a situação que criaram. Os arguidos não têm qualquer percurso criminal. A leitura dos factos espelha personalidades com escassíssimo pendor para a reincidência."
Tribunais só viram atenuantes
"Todo o caso é apreciado no pré-entendimento de que eles não vão para a prisão. Tudo o que pode ser usado para atenuante é invocado, tudo o que devia ser agravante não é", comenta Inês Ferreira Leite, penalista, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e membro da direção da associação feminista Capazes.
"A falha começa pelo MP, que não fez uma acusação com todos os elementos que deveria ter usado. Deveria ter sido mencionado o não uso de preservativo e sido pedido que os arguidos fossem inscritos na lista de agressores sexuais e lhes fossem aplicadas as penas acessórias para pessoas que cometam crimes sexuais. Não deviam poder voltar a trabalhar em funções em que fiquem responsáveis por outras pessoas, nomeadamente em bares e discotecas. Isso não se consegue evitar só com o regime de prova [acompanhamento pelo Instituto de Reinserção Social com um plano específico] que o tribunal impôs no período da pena suspensa."
Não achando que "a pena seja necessariamente injusta no caso" ou que o acórdão seja "especialmente chocante", a jurista crê que deveria ter sido contemplada a agravação "por terem cometido o crime em conjunto, ter havido conjugação de esforços. Aliás, o tribunal considera que não houve premeditação - e concordo que não houve -, mas pode considerar-se a possibilidade de concertação prévia. Porque é que o porteiro leva a amiga a casa e não as duas? Porque deixa a vítima sozinha com o barman?"
"Há sempre tolerância em relação a este tipo de arguidos, os acusados de crimes sexuais contra mulheres. São apresentados como boas pessoas, como não criminosos, que numa dada situação deram largas aos seus instintos sexuais."
Além disso, opina Ferreira Leite, "o que salta à vista no acórdão é a forma menorizante como se despacharam os efeitos do crime na vítima". Além de só serem mencionadas as sequelas físicas, quando "é de conhecimento obrigatório que todos estes crimes têm um impacto psicológico e emocional muito grande", o facto de o acórdão mencionar "um ambiente de sedução mútua" surge-lhe incompreensível: "Não encontro na descrição quaisquer factos objetivos que demonstrem a sedução mútua." Acresce, sublinha, que "ou há ou não há consentimento para o ato sexual, e se não há consentimento há crime, o que nada tem a ver com a existência ou não de um clima de sedução prévia. Sendo certo que ainda por cima o crime foi cometido pelos dois arguidos. Será que o tribunal está a dizer que a vítima seduziu os dois"?
E conclui: "Há sempre tolerância em relação a este tipo de arguidos, os acusados de crimes sexuais contra mulheres. São apresentados como boas pessoas, como não criminosos, que numa dada situação deram largas aos seus instintos sexuais. E se nem discordo da suspensão da pena, é preciso ter em conta que temos em Portugal pessoas condenadas a prisão efetiva por crimes contra a propriedade ou por corrupção, sendo como estes arguidos primários [ou seja, sem condenações anteriores]."
"Este caso é o nosso La Manada"
"É o nosso La Manada", diz uma magistrada que pede para não ser identificada, referindo-se ao processo relativo à violação de uma jovem espanhola de 18 anos, também em 2016 e também quando embriagada, por cinco homens, nas festas de San Fermín, em Pamplona, e cuja sentença encheu as ruas de Espanha de protestos, por se ter considerado que não tinha sido usada violência na consumação do crime. "O que mais revolta é que quando estão em causa crimes contra mulheres, o sinal que os tribunais dão é sempre este, de desculpabilização do comportamento dos agressores. O que era preciso para terem pena efetiva? Que já tivessem violado ou roubado antes?"
Como a penalista citada, considera que deveria ter sido valorizada o cometimento em conjunto e o não uso de preservativo. Mas ao contrário dela crê que "a medida da pena demonstra que o crime foi desvalorizado. Há um sinal de impunidade para a comunidade. Uma mulher inconsciente foi violada duas vezes! Que humilhação para ela constatar que ficam com pena suspensa."
"O que mais revolta é que quando estão em causa crimes contra mulheres, o sinal que os tribunais dão é sempre este, de desculpabilização do comportamento dos agressores. O que era preciso para terem pena efetiva? Que já tivessem violado ou roubado antes?"
A indignação sobe de tom: "E o acórdão refere que ela esteve a dançar na pista? Mas que importância tem isso? Que relevo, que relação? E de onde vem a 'sedução mútua'? Esta mulher tinha vomitado e estava na casa de banho maldisposta. Provou-se que estava incapaz de resistir quando a violaram. Até se podia ter despido na pista, caramba. Está a tentar-se que recaia na vítima uma parte da responsabilidade. E que é isto da 'baixa ilicitude'? O que seria alta ilicitude? Às vezes parece que a argumentação jurídica permite que a gente se perca e não veja a gravidade das coisas. Estamos a escudar-nos no argumento jurídico para branquear os factos."
Os factos, então. Voltemos atrás, à noite de sábado 26 de novembro. Maria, de quem pouco se sabe a partir do acórdão, tinha-se deslocado com uma amiga ao Vice Versa, que ambas frequentavam há alguns meses e de onde conheciam os arguidos. Pelas 03.30, havendo já no bar, lê-se na factualidade provada, "poucos clientes e aproximando-se a hora do seu encerramento - 4 horas da madrugada -, o arguido [barman] começou a servir à [vítima] vários shots - pelo menos três -, de bebidas alcoólicas (...) dizendo que era oferta, sendo certo que a ofendida já havia consumido várias bebidas também alcoólicas".
"De onde vem a 'sedução mútua'? Esta mulher tinha vomitado e estava na casa de banho maldisposta. Estava incapaz de resistir quando a violaram. Está a tentar-se que recaia na vítima uma parte da responsabilidade."
Pouco depois, já após as quatro da manhã, a amiga de Maria mostrou-se maldisposta, sentando-se num sofá na zona VIP, acompanhada de Paulo. Maria juntou-se-lhes, acompanhada de Marcos, e começou também a sentir-se nauseada, sendo levada por Marcos ao exterior do bar (supõe-se que para apanhar ar). Perto das cinco da manhã, como não se sentisse melhor, Maria foi levada por Marcos à casa de banho feminina e aí sentou-se no chão, junto à sanita, e vomitou. Paulo foi também à casa de banho nessa altura e "aí verificou sinais de embriaguez" em Maria.
"Tu é que tavas ali a dançar"
Eram quase seis da manhã quando Paulo se ausentou do bar, "durante pelo menos 16 minutos", para levar a amiga de Maria a casa. Entretanto, esta continuava na casa de banho e, diz o tribunal, tendo perdido a consciência, "altura em que [Marcos], verificando a incapacidade da ofendida de reger a sua vontade e de ter consciência dos seus atos, resolveu e com ela manteve relações sexuais de cópula vaginal completa, depois de a ter despido da cintura para baixo, mantendo-lhe a roupa a meio das pernas, só recuperando a consciência, a ofendida, e, voltando a si, ainda no mesmo local, quando deitada no chão, com a cabeça encostada à porta de entrada, sentiu um empurrão na porta, ouvindo nesse momento as vozes dos arguidos, que reconheceu, pretendendo [Paulo] entrar também na casa de banho."
A descrição prossegue: "Momentos depois a ofendida perdeu novamente a consciência só voltando a recuperar os sentidos quando ouvindo as vozes dos dois arguidos e sentiu umas palmadas na zona dos seus glúteos, apercebendo-se também nesse momento que estava com os calções de ganga, as meias collants e as cuecas que usava naquele dia puxados até à zona dos joelhos, o que imobilizava os seus movimentos da cintura para baixo, e que se encontrava posicionada de bruços, com o tronco totalmente apoiado na área do lavatório."
"Sentiu umas palmadas na zona dos seus glúteos, apercebendo-se também nesse momento que estava com os calções de ganga, as meias collants e as cuecas que usava naquele dia puxados até à zona dos joelhos."
Segundo o relato do tribunal, a seguir só se lembra de acordar no sofá, já vestida, quando lhe atiraram água à cara. Seriam já nove da manhã quando o porteiro Paulo a levou a casa no seu carro. Durante o percurso, o homem pediu-lhe para esquecer o sucedido "pois não podia colocar em causa a sua vida pessoal e familiar e que lhe daria em troca o que quisesse, incluindo dinheiro".
Estes apelos continuariam no dia seguinte, 28 de novembro, por sms (a este propósito, o tribunal tem o cuidado de certificar que a vítima não tinha o contacto dos agressores, que terão obtido o dela na sequência dos acontecimentos), após o dono da discoteca, tendo tido conhecimento de que os dois funcionários tinham ficado até de manhã no estabelecimento com a jovem, ter entrado em contacto com Maria e esta lhe ter contado o que se passara. Ambos os arguidos tentaram convencê-la de que estava consciente e "não tinha sido obrigada a nada": "Eu não te obriguei a nada, foi consentido, se estavas tocada e não te recordas eu não tenho culpa", disse Marcos numa mensagem. "Agora se estás arrependida eu não tenho culpa."
"Eu não te obriguei a nada, foi consentido, se estavas tocada e não te recordas eu não tenho culpa. Agora se estás arrependida eu não tenho culpa."
E Paulo: "Tenho uma filha com 14 anos e nunca na vida queria que fizessem isso que tas a dizer que te fiz coisa que não é verdade é que nunca o faria tenho 40 anos nunca o fiz! Arrependeste-te de quê? Explica-me que eu não me lembro? Sempre te tratei bem e nunca fiz nada que te desrespeite se é há quanto tempo me conheces e nunca me meti contigo sequer! Tu é que tavas ali a dançar e abraçada ao B... e ias com ele para a casa de banho!"
Maria respondeu dizendo que as explicações teriam de ser dadas à polícia: "Claro que ninguém fez nada, não vos convém, agora sou eu que tou a inventar não é? O que é que eu ganhava com isso? Vergonha só mais nada, mas o que disse a ele [dono da discoteca] digo-te a ti guarda as tuas desculpas para a polícia já fiz a queixa na PJ já fiz os exames, e se contaste ao [dono] é pq tas com medo pq sabes o que fizeste, agora tu e o outro combinem bem uma história pa contar a polícia."
"Mulher forte não é uma boa vítima"
O registo destas mensagens é quase toda a informação existente no acórdão da Relação sobre a personalidade da vítima e a sua reação ao crime. Além de, na transcrição de parte da decisão da primeira instância, se registar que "nas declarações que prestou para memória futura e, recentemente, em audiência, manteve discurso verosímil e articulado proferido naturalmente, sendo evidente a tentativa de relatar a sequencialidade factual de tudo quanto se recorda ter ocorrido no interior daquele compartimento. (...) Resulta para este tribunal estarmos perante depoimento convincente, sem acrescentar ou empolar a situação", nada mais é dito sobre ela ou as sequelas emocionais do crime ou efeitos do mesmo na sua vida. A não ser que nunca mais voltou à discoteca onde foi atacada, facto invocado pelo tribunal para considerar que não há perigo de os arguidos reincidirem (raciocínio difícil de compreender até porque se fica do acórdão com a ideia de que estes teriam ficado sem esse emprego, até por terem estado um ano privados de liberdade).
"A medida da pena demonstra que o crime foi desvalorizado. Há um sinal de impunidade para a comunidade. Uma mulher inconsciente foi violada duas vezes! Que humilhação para ela constatar que ficam com pena suspensa."
Esta escassez de informação no acórdão do tribunal superior sobre a vítima e os danos que lhe foram causados - ficamos apenas a saber que tinha várias equimoses, algumas com mais de cinco centímetros, no abdómen, nas nádegas, nas coxas, e marcas visíveis de nós de dedos e de dedos - é um dos aspetos que mais chocam a socióloga Isabel Ventura, autora de uma tese de doutoramento sobre discurso e práticas judiciais nos crimes sexuais em Portugal (publicada pela Tinta da China neste ano sob o título Medusa no Palácio da Justiça ou Uma História da Violação Sexual).
"Sei que o Direito não vai incidir sobre ela mas a decisão vai afetá-la. Há uma série de informação que se perde ao longo da trajetória judicial; talvez o tribunal de primeira instância tenha dado relevo às consequências do crime na vida dela. Mas quando assisti a julgamentos percebi que para o Direito é fundamental haver uma contabilização dos danos. Se não existe é difícil ver o dano. E é um problema", comenta a investigadora, a quem "o discurso do acórdão da Relação parece particularmente revelador do desvalor conferido à violência sexual, sobretudo em certos contextos."
Reconhecendo que a decisão tem de um modo geral um discurso "bastante neutro, incluindo nos comentários que faz às tentativas de descredibilização da mulher", estranha, como as outras entrevistadas, a referência à "sedução mútua": "Parece vir do que os arguidos disseram." E concorda com a magistrada em que essa referência corresponde a uma culpabilização da vítima, "mas subtil. Não é a culpabilização dos acórdãos de um Neto de Moura [o juiz da Relação que em acórdãos sobre violência doméstica sobre mulheres invocou o "adultério" das vítimas]. Aí toda a gente se escandaliza porque aquilo é tão primário. Mas há aqui uma desculpabilização dos arguidos, até quando se diz que "a ilicitude não é elevada" ou que os danos físicos não foram muito graves, ou que não há violência. O que até é contraditório com o que se diz depois a propósito do pedido de indemnização".
"Acho que esta rapariga é forte. E as piores vítimas são as mulheres fortes. Não se comportam como vítimas típicas e por esse motivo o seu sofrimento tende a ser desvalorizado."
Nada que a surpreenda, porém: "Quando fiz a edição do livro a editora disse que havia muitas ideias sobre as mulheres e os crimes sexuais que se repetem ao longo dos séculos - e é verdade. Este caso faz-me lembrar algo que li nas atas da comissão de revisão do CP, em 1982 ou 1995. Havia um procurador que considerava que a pena para os crimes em que a pessoa estava inconsciente devia ser mais elevada e outra pessoa que defendia que não, porque estando a vítima inconsciente era como se não houvesse vítima."
Ou isso ou uma vítima que não se encaixa na definição tradicional da mulher vitimada. "Acho que esta rapariga é forte", diz Inês Ferreira Leite, baseando-se na atitude de Maria nas trocas de mensagens com os seus agressores. "E as piores vítimas são as mulheres fortes. Não se comportam como vítimas típicas e por esse motivo o seu sofrimento tende a ser desvalorizado."
Tribunal esqueceu estatuto da vítima
Ferreira Leite concorda com Isabel Ventura em que o acórdão deveria ter mencionado a vitimologia, ou seja, o impacto que o crime teve na vida da vítima para além dos danos físicos: "Dizem que não voltou ao bar. Será que voltou a sair à noite? Será que mudou de maneira de vestir? Que a sua vida sexual ficou afetada? Nada disso é questionado, referido."
E esta professora de Direito Penal, que começou este ano, em estreia absoluta, já que a matéria nunca fez parte do currículo, a lecionar uma cadeira sobre crimes sexuais na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, nota também que não houve, na primeira instância, pedido de indemnização para a vítima.
"Em nenhum momento das suas declarações deixa a ofendida transparecer qualquer intuito vingativo ou retaliatório contra os arguidos, tanto mais que não deduziu qualquer pedido de indemnização civil sendo, assim, de afastar hipotético intuito de locupletamento com a apresentação da queixa."
A decisão do Tribunal de Gaia atesta-o em termos no mínimo curiosos: "Em nenhum momento das suas declarações deixa a ofendida transparecer qualquer intuito vingativo ou retaliatório contra os arguidos, tanto mais que não deduziu qualquer pedido de indemnização civil sendo, assim, de afastar hipotético intuito de locupletamento com a apresentação da queixa."
Ferreira Leite tem uma leitura oposta: "Se não houve pedido de indemnização, parece que não há sofrimento. Mas se a vítima não pediu, até porque pode não ter constituído advogado, era o tribunal que tinha de atribuir uma indemnização."
A Relação tem a mesma opinião: "Percorrendo a sentença verificamos que nela em lado algum se teve em atenção o Estatuto da Vítima." E explica quem, nos termos desta lei, é uma vítima, e uma vítima especialmente vulnerável: "A vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social".
"Percorrendo a sentença verificamos que nela em lado algum se teve em atenção o Estatuto da Vítima (...). Tendo a vítima em causa esse estatuto, competia ao tribunal (...) ponderar se era caso de arbitramento de uma indemnização. (...) Acontece que não ponderou."
É o caso de Maria, já que "as vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis", "sendo "criminalidade violenta" as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a cinco anos."
Assim, concluem os juízes desembargadores Maria Dolores da Silva e Sousa e Manuel Soares, tendo a vítima em causa esse estatuto, "competia ao tribunal (...) ponderar se era caso de arbitramento de uma indemnização a título de reparação de eventuais prejuízos sofridos, com respeito pelo princípio do contraditório. (...) Acontece que o Tribunal, não obstante a vítima ter um tal Estatuto, não ponderou como lhe competia a atribuição da referida indemnização".
Em consequência dessa falta, a Relação anula a sentença "relativamente a esta questão e apenas para este efeito", e remete ao mesmo tribunal e aos mesmos juízes a ponderação, "cumprido que seja o contraditório", da atribuição de uma indemnização à vítima. A não ser que esta expressamente o recuse.
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